Quando
os dedos deslizavam pelo violão , seus olhos pareciam cantar a melodia. Os
traços firmes de seu rosto , sua tez morena. Olho grandes e azuis e cílios
espessos, marcados por sua sobrancelha grossa e masculina. Nenhum homem sabia
sorrir com o olhar como ele, ou acordar a preguiça e o calor em qualquer mulher
que o admirasse ao passar debaixo de sua janela.
Em
sua composição, dois idiomas se entrecruzavam, pareciam brigar por espaço e
rima, mas na verdade se abraçavam. Era uma valsa melodiosa que lembrava o tema
de um filme qualquer, onde a moça belíssima de uma cidade de interior, só de
passar na calçada fazia a todos se apaixonarem por ela. Na primeira estrofe a
moça nascia, com sua beleza e alegria e ainda no meio da canção sua vida era
medo e nostalgia. Na estrofe pouco se cantava sobre a moça, e se cantava mais
sobre a dor de viver sem ter vida ou até sem amor. E quando a tristeza invadia
os ouvidos de quem ouvia a canção melodiosa, a moça surgia dançando e sorrindo,
em sua idade cheia de esperança por tudo que ainda não havia vivido. A música
então reiniciava, sem fim, sem mais nada.
Os que passavam e ouviam, levavam consigo uma angústia da incompletude
da letra, mas sentiam que o ritmo lhes concedia certa parte na autoria... e
saiam imaginando um fim melhor para a moça...talvez um amor que a fizesse amar,
ou um filho no ventre para a ocupar. Cada um projetava o próprio desejo na
melodia que soava, e saíam geralmente assoviando ou murmurando a canção pela
calçada.
No
entanto, o cantor e compositor, frustrado , criou em sua alma a superstição de
que a música enquanto estivesse incompleta acelerava seu envelhecimento. E este
pensamento o atordoava, e seus dedos já começavam a tropeçar nas notas. E o
suor escorria-lhe em uma tímida ansiedade.
Precisava
terminar a canção. Nada lhe impedia de prosseguir. E nada o inspirava.
No
outro lado da rua, um ex policial sentado no parapeito de um edifício,girava
lentamente os tornozelos enquanto o calor do meio dia lhe queimava a face.
Abaixo de seus pés, doze andares, e em suas mãos o cimento áspero da janela. O
calor o consumia menos que sua angústia. Em sua alma a certeza de que somente
sua morte traria a resposta.
Algumas
pessoas começavam a observá-lo , paradas conversavam entre si, algumas curiosas
e desejando no íntimo que o espetáculo se encerrasse antes do horário do
próximo metrô e outras imaginando o que faria uma pessoa se colocar em uma
situação como aquela, sendo que havia tantas outras formas anônimas de
suicídio.
Um
senhor de sessenta e cinco anos parou, olhou para cima e retirando seu último
cigarro do maço o desentortou. Com a mão esquerda buscou seu isqueiro no bolso
surrado. E sem acender o cigarro, ficou
observando a cena imaginando a idade do homem que estava lá em cima. Ajustando
seus óculos embaçados no rosto, cerrou os olhos para tentar enxergar o rapaz
que sentado no alto do prédio parecia gritar algumas palavras. Era difícil
olhar contra o sol, e sua vontade de acender o cigarro o fez afastar-se dali
até a próxima quadra onde um bar estava aberto.
Durante
vinte e cinco anos o bar abria todas as
manhãs, e aquela seria mais uma manhã de funcionamento. A proprietária, uma
senhora ruiva e gorda, escorava os peitos sobre o balcão enquanto servia a
última dose de um cliente que passara a noite bebendo tequila.
A
penumbra do ambiente e o cheiro de mofo e fumaça de cigarro, confundiam os
freqüentadores em relação ao tempo que passavam ali. Alguns estavam por muitas
horas fumando e bebendo olhando para um ponto na parede, outros trocavam palavras
desconexas entre si. No entanto se havia algo em comum naquelas poucas pessoas
reunidas era a ausência de qualquer traço de alegria, e um olhar semi aberto e
cansado da vida. Como se todos formassem um único organismo infeliz.
Em
um único gole, aquele rapaz esvaziou o copo. Deixou seu olhar alguns segundos
sobre os peitos daquela mulher robusta que o servia . E lembrou de sua
infância. De alguma forma aqueles seios fartos o lembravam de sua mãe. Uma
senhora de baixa estatura e roliça, que passava os dias entre as panelas e o
tanque. Trabalhava muito e quase todos os dias podia ser vista em seu vestido
estampado e agarrado ao corpo. Volta e meia um dos peitos saía para buscar um
ar e ela o empurrava displicente para dentro do vestido. A lembrança fez o
rapaz chacoalhar a cabeça, levantar-se e sair do bar.
Na
rua algumas ambulâncias e gritos e pessoas na direção contraria de onde ele ia.
Havia uma preguiça em saber o que havia acontecido uma quadra atrás. Resolveu
prosseguir e retornar para casa. Era o momento de enfrentar seu problema. Havia
pensado a noite toda. Algo deveria ser feito.
Em
seu pensamento começou a planejar como esvaziaria o guarda roupa com todas as
coisas dela, talvez jogaria sobre a calçada de forma dramática, ou será que
isto poderia significar que ele se importava demais? E se apenas ateasse fogo
em todas os pertences dela? Não. Com certeza a fogueira chamaria muita atenção.
Doar aos pobres? Que pobres? Não conhecia ninguém mais pobre do que ele mesmo.
E se apenas jogasse tudo no lixo e quando ela voltasse para buscar não
encontraria nada, nem ele ali para dizer onde tudo foi parar. É isto...ele
mesmo deveria sumir com todos os objetos.
A cada passo em que se aproximava de sua casa, as idéias pareciam borbulhar em sua mente. E chegando na esquina percebeu em frente ao seu portão o contorno de um corpo feminino lhe aguardando.Era ela. Sentada no chão. Era ela sim. Seu cabelo brilhava ao sol e ao vê-la inspirou o ar buscando forças e relembrando do cheiro de sua pele. Não. Precisava resistir. Provavelmente estava envergonhada de tudo o que fez. Talvez ele apenas devesse perdoá-la.
A cada passo em que se aproximava de sua casa, as idéias pareciam borbulhar em sua mente. E chegando na esquina percebeu em frente ao seu portão o contorno de um corpo feminino lhe aguardando.Era ela. Sentada no chão. Era ela sim. Seu cabelo brilhava ao sol e ao vê-la inspirou o ar buscando forças e relembrando do cheiro de sua pele. Não. Precisava resistir. Provavelmente estava envergonhada de tudo o que fez. Talvez ele apenas devesse perdoá-la.
Ela
estava ali, sentada. E segurava os calcanhares. Apertando-os como se pudesse
fazer o tempo voltar e desfazer tudo o que havia feito. Enquanto olhava para o
portão se abrindo ao seu lado, percebeu que ele estava vindo em sua direção.
Levantou-se. Disfarçou a ansiedade. Começou a ajudar uma senhora com um bebe e duas
bolsas saindo de casa. A senhora parecia irritada com a ajuda e prosseguiu
caminhando sem agradecer.
A
senhora ajeitou o bebe no colo. Jogou as bolsas sobre os ombros e continuou caminhando.
Deixou atrás de si aquela moça, intrometida, em pé, ansiosa, olhando um rapaz
vindo em sua direção. Enquanto ela mesma caminhava na direção deste rapaz.
Ao
passar por ele com o bebe, pensou que nunca tinha visto um rapaz mais triste
que aquele. E o bebe puxou-lhe os cabelos sorrindo fazendo-a lembrar de que
estava indo para a rodoviária. Faltava poucos minutos para o ônibus passar. A
bolsa estava pesada. Não tinha dinheiro para o táxi. Precisava se concentrar.
Chamou
a atenção do bebe que mexia sem parar em seu colo. Viu o ônibus vindo e acenou
para ele com o pé. Não havia mãos sobrando para que fizesse o aceno. Assim que parou,
ninguém desceu para lhe ajudar e o olhar impaciente do motorista mostrava que
ela estava atrapalhando o itinerário que precisava seguir. Ela jogou a bolsa
para dentro. Caiu na escada. Tentou entrar e enfim alguém levantou para tirar
sua bolsa do caminho. Entrou no ônibus e sentou-se. Uma bolsa embaixo do banco
, outra em seu colo e o bebe em cima. O ônibus estava lotado. E ela preocupada
em perder o horário de sua passagem na rodoviária. Precisaria pegar mais dois
ônibus para então chegar no seu destino. Um destino que mudaria para sempre a
história daquele bebe que carregava nos braços. Por um instante imaginou os
pais chegando em casa e procurando a babá e o bebê mas pensou que estaria longe
o suficiente para não se preocupar. Ninguém nunca mais acharia aquela criança e
ela estaria desfrutando de seus vinte mil reais . A porta do ônibus fechou-se.
O
motorista impaciente pelos minutos perdidos acelerou com força cantando os
pneus ao arrancar o ônibus. Era sua última viagem do dia, queria descarregar o
mais rápido possível e voltar para casa. Não tinha ninguém lhe esperando, não
tinha nada especial para fazer. Nem
comida havia em sua geladeira já que o fogão ele mesmo havia vendido meses
atrás para pagar algumas dívidas. Além de cinco cervejas e duas formas de gelo
vazias, havia apenas um eco de solidão em seu refrigerador, em sua casa e em
sua alma. Ainda faltavam vinte e cinco paradas de ônibus antes de chegar ao
terminal. Sim. Ele estava contando. Os sons dos passageiros entrando e saindo,
falando, sorrindo, reclamando ou chorando não chegavam aos seus ouvidos.
Nestes
últimos minutos de trabalho suportava a presença de outras pessoas apenas
imaginando que ninguém era real, e ele mesmo era o ônibus. E cada carro na
estrada movia-se sozinho . Não havia ninguém...assim como em sua casa. A rua, a
cidade, o mundo...estava vazio. Sua tristeza era sem fim. Assim como sem fim
parecia ser a rotina deste último itinerário.
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